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segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Mendigo da Praça da Alfândega - Capítulo I


Meu olhar piorou dez vezes depois de ver alguém que vencera na vida. Sophia era mil vezes melhor que aquela boneca inflável de face inexpressiva, mas eu pensava a noite inteira se eu era melhor que o alto executivo bem vestido, cheiroso e boa praça que agora tomava meu uísque dose anos comprado na Free Shop. Conversamos na saleta de jantar até tarde, pois Sophia insistia em mantê-los por perto com sua boa culinária. Era hora da sobremesa. A intenção dela era um pouco maior que me mostrar um homem de estirpe, queria mesmo era mostrar que não só nós tínhamos problemas conjugais. Ora, a única coisa que aquele casal tinha de problema era saber qual o carro importado que fossem comprar, ou o dia certo para a viagem a Paris, ou os filhos bem vestidos e cheirosos e boas praças que iam mal em matemática. Nada que chegasse aos pés de nossas contas atrasadas e planos desfeitos por problemas financeiros. Ao que foram embora, Sophia recolheu os pratos e eu acendi um cigarro frente à televisão. Sophia conversava comigo enquanto levava os pratos a pia. Tinha um jeito engraçado de lavar os pratos, passando a mão diversas vezes sobre eles, como que fizesse carinho por ser louça de família. Sentia, talvez, que suas ancestrais lavaram os mesmos pratos depois de jantares como o dessa noite, enquanto seus maridos bebiam uísque e fumavam charutos conversando com gente importante naquelas enormes salas antigas de móveis cheios de adornos. Por quantas mãos passaram aquela louça, aqueles talheres de prata, até chegarem a ela por presente de casamento, acreditando a presenteadora que o marido da noiva se tratava do mesmo homem distinto que outrora fora seu finado marido. Aliciava os pratos e falava comigo, me contando coisas da mulher do Filipe que ele contara para ela. Fingindo não prestar atenção a ela, fitava a televisão, respondendo monossilabicamente o que ela falava. Na verdade, nem a televisão prendia minha atenção; estava fixo na fumaça do cigarro, imaginando o que Filipe e a esposa de plástico falavam, enquanto ela se ajeitava para dormir ao seu lado, numa cama grande e deliciosamente confortável.


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