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segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Mendigo da Praça da Alfândega - Capítulo I


- Sim, é tudo inútil. Aprendi a não necessitar mais de meu corpo. Ele é apenas veículo de meu espírito. E meu espírito é livre, quando saio dele. Quando medito, posso sair dessa forma decadente e me transformar em qualquer coisa. Transporto-me para qualquer ser de alma. Em cão, em árvore, em pássaro.
Claro que eu não acredito naquilo, ninguém pode se transportar para outro lugar. É impossível. Eu, sendo ateu desde a morte do meu pai, não posso conceber o que o velho fala e tudo aquilo me parece muito infantil.
- Mas então me diga que posso eu fazer para parecer menos faminto?
- Podes aprender a jejuar, pensar e meditar. Talvez seja um grande avanço.
- Mas se jejuar, ficarei com mais fome!
- Cessarás de passar a fome dos homens; passarás a sentir a fome dos deuses. Cessarás de sujeitar-te a caprichos alheios; passarás a seguir teus próprios caprichos, até aprender a não tê-los mais. A escassez é a maior inimiga do homem. Mas a escassez para espírito daqueles que sabem viver em verdade ela é um alento.
Olho para o relógio e já se passam 45 minutos daquele diálogo maluco. Não posso me demorar mais, pois Sophia me pediu para trazer comigo alguns legumes e massa para o jantar. Tinha de passar no mercado e também na farmácia. Explico minha situação e me despeço do velho.
- Vai-te homem tolo. Continua tua jornada de sujeição e a embriaguez de afogar-se em si mesmo.
Indignei-me. Como pôde me chamar de tolo, logo ele que vivia a se amontoar de quinquilharias num canteiro de uma avenida? Dou de ombros, rosno um pouco e vou embora. Noutro dia, tiraria as devidas satisfações.


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