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segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Mendigo da Praça da Alfândega - Capítulo I


- Meu jovem - diz calmamente - perdi coisas preciosas na minha vida. Coisas cuja falta enlouqueceria qualquer homem. Ceifaram de minha vida meu filho e minha mulher. Eu, igual a ti, possuía coisas. Depois que perdi as mais importantes, percebi que o que eu possuía não pertencia a mim. Eram coisas emprestadas apenas para minha sobrevivência e que, quando eu morrer, passariam a ser de outrem. Quando perdi mulher e filho, percebi que nada do que eu deixaria seria digno de se ter. Carros, casas, terrenos, propriedades, roupas, isso não é digno de herança, de legado. Isso é falácia, imaginação.

Fico intrigado com a história do velho, mas a hora de almoço acabou e ele é enfático ao se despedir de mim, interrompendo minha inquirição. Respondo cordialmente sua despedida e volto ao prédio, subindo cento e sessenta degraus até minha sala. Por não ter almoçado, sinto meu estômago gritar comigo, me censurando por tê-lo esquecido.

Encerro o expediente, vou até o estacionamento para pegar meu carro já pensando em Sophia, que sempre me espera de janta pronta. Guardo o carro na garagem e subo os dez lances de escada do meu prédio, que também tem o elevador quebrado. Sophia, que já comeu, concentra-se na maquete de um prédio que está projetando, de vinte e poucos andares. Ao me ver, levanta de leve a cabeça, me entreolha pelas lentes do óculos e diz que a comida está no micro-ondas, é só esquentar. Não sei se porque era novidade, mas ficava linda de óculos. Linda e sexy. Pensei agarrá-la ali mesmo, de óculos e tudo, só que a fome já me castigava há horas. Esqueço da ideia, esquento a janta e sento à mesa. Sophia me pergunta o porquê do silêncio, já que todos os dias eu chego reclamando do trabalho, retruco que é nada e me concentro na salada. Acho que a comida está tão insossa que começo a conversar com minha mulher sobre o mendigo. Conto que ele tinha perdido a mulher e o filho e que percebeu, depois disso, que nada era bom para se ter. Deixou tudo e foi morar ali, no meio da Praça da Alfândega.


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