- Meu jovem - diz calmamente - perdi coisas preciosas na minha vida. Coisas cuja falta
enlouqueceria qualquer homem. Ceifaram de minha vida meu filho e minha mulher.
Eu, igual a ti, possuía coisas. Depois que perdi as mais importantes, percebi
que o que eu possuía não pertencia a mim. Eram coisas emprestadas apenas para
minha sobrevivência e que, quando eu morrer, passariam a ser de outrem. Quando
perdi mulher e filho, percebi que nada do que eu deixaria seria digno de se
ter. Carros, casas, terrenos, propriedades, roupas, isso não é digno de
herança, de legado. Isso é falácia, imaginação.
Fico intrigado com a história do velho, mas a hora
de almoço acabou e ele é enfático ao se despedir de mim, interrompendo minha
inquirição. Respondo cordialmente sua despedida e volto ao prédio, subindo
cento e sessenta degraus até minha sala. Por não ter almoçado, sinto meu estômago
gritar comigo, me censurando por tê-lo esquecido.
Encerro o expediente, vou até o estacionamento para
pegar meu carro já pensando em Sophia, que sempre me espera de janta pronta.
Guardo o carro na garagem e subo os dez lances de escada do meu prédio, que
também tem o elevador quebrado. Sophia, que já comeu, concentra-se na maquete
de um prédio que está projetando, de vinte e poucos andares. Ao me ver, levanta
de leve a cabeça, me entreolha pelas lentes do óculos e diz que a comida está
no micro-ondas, é só esquentar. Não sei se porque era novidade, mas ficava
linda de óculos. Linda e sexy. Pensei agarrá-la ali mesmo, de óculos e tudo, só
que a fome já me castigava há horas. Esqueço da ideia, esquento a janta e sento
à mesa. Sophia me pergunta o porquê do silêncio, já que todos os dias eu chego
reclamando do trabalho, retruco que é nada e me concentro na salada. Acho que a
comida está tão insossa que começo a conversar com minha mulher sobre o
mendigo. Conto que ele tinha perdido a mulher e o filho e que percebeu, depois
disso, que nada era bom para se ter. Deixou tudo e foi morar ali, no meio da
Praça da Alfândega.
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